Cannes 2021: Medusa encoraja libertação em distopia conservadora
Dirigido por Anita Rocha da Silveira, filme brasileiro compete na mostra Quinzena dos Realizadores
A teocracia brasileira está chegando – pelo menos em alguns dos filmes nacionais que têm rodado festivais de cinema pelo mundo. Medusa, da carioca Anita Rocha da Silveira, chega no período tardio da estética evocativa dos anos 1980 – muito neon, músicas pop regravadas e figurino retrô chic –, mas é uma expressão importante, que denuncia forças que devemos confrontar atualmente.
O foco é a amizade entre Mariana (Mari Oliveira) e Michele (Lara Tremouroux), moças “bonitas, recatadas e do lar” (sim, a frase épica e duradoura faz uma pontinha no filme), que vivem vidas duplas: de dia, participam de um coral de igreja e, de noite, usam máscaras para capturar, agredir e filmar outras mulheres que consideram sexualmente impuras.
É uma armação simples para um filme direto, mas a diretora está nos preparando para uma viagem mais profunda. Um dos ataques noturnos dá errado, e Mariana é ferida no rosto. O que uma ferida tão obscena pode causar numa moça contida? Em primeiro lugar, a demissão de seu emprego numa clínica de cirurgia plástica. Eventualmente, a semente de libertação do sistema que a oprime.
Medusa não incorpora uma temática tecnológica, na qual o público é monitorado por onde vai. Em vez disso, um exército de “guardas de esquina” treinados na igreja ronda a cidade, pronto para separar e espancar pessoas que demonstram qualquer expressão física de amor. E estas, também, estão por toda parte – afinal, a libido humana é infreável.
Rondando tudo estão duas forças opostas: o espectro de uma moça libertária (Bruna Linzmeyer), desaparecida da cidade após ser supostamente atacada, e um pastor (Thiago Fragoso), líder espiritual das personagens. Apesar de ser um filme composto por um elenco de mulheres, a presença dele é o que denuncia que todo o sistema fora montado por um patriarcado, mesmo que oculto.
Existe um paradoxo na montagem do filme, no qual a duração (mais de 2 horas) fica insustentável. Ao mesmo tempo, várias sequências são inesquecíveis graças à paciência com que são executadas. Não soa implausível criticar o filme como uma série de sequências cujas partes somam mais do que o todo. O toque de terror sutil, de estranhamento dos enquadramentos e da mise-en-scène da diretora representa uma visão única e perspicaz dentro do cinema brasileiro.
Fonte: Luiz Oliveira/Metrópoles