Número de resgates de trabalho escravo explode no Paraná
No fim de março, 14 trabalhadores foram resgatados em pedreiras no interior do estado e número de resgates em 2023 já se aproxima do total do ano passado
Sancionada no dia 13 de maio de 1888, a Lei nº 3.353, mais conhecida como Lei Áurea, marca um dos mais importantes momentos da história brasileira. Com apenas dois artigos, a legislação foi o último passo de um processo gradual para acabar com a escravidão legalizada no Brasil, dispondo o seguinte em seu artigo primeiro: “É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.” O documento, assinado pela Princesa Imperial Regente, Isabel de Bragança, encerrou um período de séculos de legalidade à exploração degradante do trabalho humano. Mas, 135 anos depois, ainda não foi possível romper com o costume escravista arraigado no seio da sociedade brasileira. O Paraná também não escapa.
Nos dias 27 e 28 de março, o Ministério Público do trabalho (MPT-PR), em conjunto com auditores fiscais do Ministério do Trabalho e com o apoio da Polícia Federal, realizou uma operação de resgate no município de Mauá da Serra, no norte do Paraná. Ao todo, 14 trabalhadores (seis deles oriundos do estado do Piauí) foram resgatados em situação análoga à escravidão em pedreiras onde atuavam, com parte dos funcionários vivendo num curral com cozinha e colchões improvisados ao lado de animais, enquanto outra parte vivia em tendas montadas com lonas no local onde realizavam o trabalho.
As vítimas trabalharam por um período de oito meses nessas condições, tendo de utilizar a própria pólvora para montar bombas caseiras e detonar as rochas. Além disso, eles não tinham registro de contrato de trabalho e eram pagos por produção, mas precisavam custear gastos com alimentação e produtos pessoais. Essas despesas eram descontadas do salário e podia acontecer do trabalhador terminar o mês devendo ao empregador.
Até março deste ano, 15 trabalhadores em situação análoga à escravidão já haviam sido resgatados no Paraná. Em apenas três meses, portanto, o número de resgates já se aproxima do total do ano passado, quando 17 trabalhadores foram encontrados nessas condições. No Brasil, até o dia 20 de março, 918 trabalhadores em condições semelhantes à de escravidão foram resgatados em 2023. O número é recorde para um 1º trimestre em 15 anos, ficando atrás apenas do total de 2008, quando 1.456 pessoas foram resgatadas.
Para Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, procuradora do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT-PR), o momento atual, com episódios de enorme repercussão nacional e até mesmo internacional , serve como um sinal de alerta para toda a sociedade. “Nós estamos vivendo um momento de repique. Nos primeiros três meses de 2023 tivemos números escandalosos de resgatados da situação de trabalho escravo e todo mundo está fazendo a mesma pergunta: o que está acontecendo? Eu vou dizer que eu não tenho a resposta”, afirmou a procuradora. “Mas o que importa é que as situações de violações de direitos humanos estão vindo à tona, que os resgates estão acontecendo e que medidas estão sendo tomadas pra que isso não volte a acontecer”.
Para a procuradora, é cedo para avaliar se o alto número de resgates é algo que foi represado por qualquer motivo, se é apenas desvio estatístico que os matemáticos poderiam explicar ou se as pessoas estão se conscientizando sobre o trabalho escravo e tendo coragem de fazer denúncias. “Enfim, as hipóteses são muitas e não está fechado ainda o diagnóstico sobre o que está acontecendo”, afirmou ela.
Em uma década, 189 trabalhadores foram resgatados no Estado
Ao longo da última década, entre os anos de 2013 e 2022, um total de 189 trabalhadores foram flagrados em situação de escravidão no Paraná e 15.750 no Brasil. Os anos com mais ocorrências no estado foram 2013 (64) e 2021 (32), enquanto no país os períodos com mais registros foram 2013 (2.808) e 2022 (2.575). De acordo com a procuradora Cristiane Lopes, é muito comum haver abuso da posição de empregador quando o trabalho envolve algum tipo de deslocamento, ou seja, o trabalhador deixa a sua região de origem para trabalhar em locais mais distantes (o mais comum são pessoas deixando as regiões Norte e Nordeste para trabalhar no Sul ou Sudeste). “Se você está migrante, se você despendeu recursos para aceitar a oferta de trabalho, se você não tem um meio social pra te ajudar, as circunstâncias vão fazer com que você não consiga sair”, aponta a representante do MPT-PR, citando ainda que também acontecem micro-imigragrações dentro do próprio Paraná, com o trabalho escravo afetando justamente aqueles oriundos de localidades com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no estado. Quanto aos setores onde há mais flagrantes de trabalho análogo à escravidão, a procuradora cita a construção civil e a agricultura, especialmente em trabalhos envolvendo empreitadas específicas, como o período de colheita de uma determinada cultura ou uma construção específica de grande vulto ou em local mais retirado.
Dificuldade de fiscalização
Embora o Paraná tenha sido responsável por apenas 1,7% dos resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão no país ao longo da última década, Cristiane Lopes ressalta que não é possível assegurar que os dados expressem a realidade vivenciada pelos trabalhadores paranaenses. E isso por conta, principalmente, da estrutura de fiscalização, deficitária. “Nós não temos planejamento de forças-tarefa pra pra verificar a situação das principais culturas que demandam força intensiva pro Paraná. A gente não tem planejamento pra ações de fiscalização. Isso faz com que nós não saibamos se existe trabalho escravo no Paraná ou se não existe trabalho escravo no Paraná. E no meu entender, esse é o principal motivo que faz com que o Paraná fique pra trás nos índices de trabalho escravo: a própria estrutura de fiscalização”, afirma ela, pontuando que o Ministério do Trabalho perdeu muitos auditores fiscais.
“As circunstâncias para que o trabalho escravo aconteça são o despreparo, a falta de vigilância e a terceirização desenfreada”, pondera a procuradora. Recentemente, inclusive, o Ministério Público do Trabalho esteve reunido com o Governo do Estado para propor a criação e adoção de uma política de prevenção ao trabalho escravo no Paraná. “O que a gente quer é que não tenha trabalhadores pra ser resgatados em situação de trabalho escravo. O aumento das denúncias é bom sobre a perspectiva de que essa verdade está vindo à tona. Mas agora isso demanda uma ação e ação tem que ser acabar com as condições que dão origem a situações de trabalho escravo”, diz a procuradora, destacando que o Brasil precisa ter a “dignidade de encarar os problemas como eles são” e e aceitar a dura realidade. “O trabalho escravo está de novo [em evidência] no país. E se a gente aceitar esse fato e vincular ele à necessidade de aumentar a dignidade de toda a sociedade brasileira, eu acho que isso pode ser um ponto para otimismo.”
O que configura o moderno trabalho escravo
Mas afinal, quais tipos de situações podem configurar uma situação de trabalho análogo à escravidão? Porque quando pensamos em trabalho escravo, até por conta das lembranças das aulas de História e da influência do cinema, uma das primeiras imagens que vem à cabeça é de uma pessoa com uma bola de ferro presa aos pés ou um senhor de escravos ameaçando os trabalhadores caso eles não façam o que ele manda. Hoje em dia, no entanto, o cerceamento da liberdade do trabalhador pode se dar de forma muito mais sutil, explica a procura do MPT-PR. “Por exemplo, se você chama uma pessoa de longe para trabalhar em determinada obra ou serviço agrícola e você não dá para essa pessoa um mecanismo para que ela possa se sustentar – ou seja, você não dá alimento pra ela, você não dá um alojamento pra ela, você não deixa ela sair de lá porque ela não tem dinheiro pra sair de lá.
Então o cerceamento de liberdade pode ser com ou sem violência. Ou, digamos, com violência armada ou com violência patrimonial”, explica Cristiane Lopes. “Muitas vezes o trabalho escravo envolve uma imigração prévia. E se você migrou pra um trabalho escravo, você foi traficado. Então, além de tudo, a gente tem o tráfico de pessoas unido com o trabalho escravo. E o fato de você ter emigrado pra realizar aquele trabalho, ter chegado naquele lugar e as condições de trabalho não serem aquilo que foram prometidas, e você sem dinheiro, sem comida, sem onde ficar, sem ter pra quem reclamar… Você pode estar com a sua liberdade totalmente cerceada, sem que para isso eu tenha que contratar algum capanga.” Basicamente, então, o conceito central de trabalho escravo tem a ver com o cerceamento da liberdade, seja por meios clássicos, seja por meios econômicos, que são os mais comuns no Brasil de hoje.
“Mesmo porque os meios econômicos são os mais baratos. É muito mais fácil não deixar alternativas pros trabalhadores, não pagar o salário que foi prometido, porque sem dinheiro o trabalhador não consegue comprar passagem de ônibus para sair do trabalho. Então as vezes basta isso, você contém o trabalhador numa situação de trabalho escravo porque ele está no meio do mato, sem ter ninguém pra quem reclamar e sem poder sair. E você pode até dizer que é bonzinho. ‘Não está feliz?”, como muitos escravagistas dizem, ‘eles podem ir embora. Sim, mas como?”, continua Cristiane.
“Muitas vezes os trabalhadores até empenham seus bens pessoais para poder acudir uma oferta de trabalho e daí como é que eles vão voltar com uma mão na frente e a outra atrás? Às vezes pegam emprestado um dinheiro no lugar onde eles viviam para poder aceitar uma oferta de emprego. Então eles se veem num dilema moral e até numa certa negação no início. ‘Não, não, eles vão me pagar. Não é possível que isso daqui seja uma enganação, não é possível. Não, realmente eu fiz a viagem. Realmente eles tiveram despesa ao me trazer pra cá, então eu vou pagar essa despesa, depois com o meu salário eu vou embora.’”, relata a procuradora.
Rodolfo Luis Kowalski - Bem Paraná